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terça-feira, 25 de junho de 2013

A quem serve a "cura gay"?

A “farsa” pressupõe ainda uma relação dialetizada entre a “máscara ideológica” e a “efetividade”: é justamente o confronto dialético da “efetividade” (das novas condições históricas) com sua “máscara ideológica” que faz desta última uma farsa. Ora, em razão da cisão que não mais é mediatizada de maneira reflexivo-dialética, a “máscara” ideológica, no fascismo, como que “endurece”, não se acha mais numa relação dialetizada com a “efetividade” que possa refutá-la como “farsa”, ou seja, a ideologia torna-se literalmente “louca”. (ZIZEK 1990 em Eles não sabem o que fazem, p. 30)

Na última terça-feira, 18/06/2013, foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos da Presidência da República, presidida pelo pastor Marcos Feliciano (PSC), o projeto de decreto legislativo 234/11 de autoria de João Campus (PSDB-GO), apelidado de “Cura Gay”, no qual dita:

Esse PDC, conforme versa o autor, originou-se, nas queixas de profissionais, que por conta da aplicação do parágrafo único do art. 3º e o art. 4º da Resolução nº 01/99 do Conselho Federal de Psicologia, tem sido levados a julgamento no Conselho de Ética de seu órgão de classe, já existindo, inclusive, profissionais que estão impedidos de exercerem a profissão.

Esse PDC nº 234/2011, também foi motivado, conforme o autor da proposta, pelo objetivo de ajudar a um número expressivo de pessoas que sentem a necessidade de procurar profissionais da Psicologia para harmonizar os seus conflitos interiores, mas estão sendo impedidos de obterem ajuda em função da aplicação da Resolução nº 01/99 do Conselho Federal de Psicologia.

          A proposta legislativa versa sobre a liberdade e a proibição do psicólogo para atender pessoas com transtornos resultantes de desequilíbrio e de conflitos interiores em decorrência de dúvidas e rejeição de sua opção pela homossexualidade.

Do ponto de vista da Psicologia, tomando como referência o Código de Ética do Psicólogo, aprovado em 2005, e seguido por profissionais da área, podemos levantar alguns importantes destaques:

II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.


Pergunta-se, portanto, há neste item do código algum impedimento de que uma pessoa homossexual não seja atendida, caso esta procure um profissional, para trabalhar o sofrimento que eventualmente lhe cause sua orientação sexual?

A homossexualidade não é algo que pode ser separado de uma pessoa nem uma pessoa pode ser enclausurada em sua orientação sexual. A orientação sexual apresenta-se como um modo de relação entre pessoas e, assim, fica difícil ser homossexual sozinho. Portanto, a homossexualidade tem um caráter social, o qual voltaremos mais adiante. Por outro lado, a pessoa homossexual não deve ser reduzida a um estigma, exemplo banal dado por uma das pessoas que lhes escrevem: “assumo minha homossexualidade e também que gosto de chocolate, ou melhor, minha orientação sexual é homossexual, mas nem por isso sou somente homossexual”. Isso incide de forma voraz nesse projeto porque este tem como pressuposto que o único modo de sofrer (e morrer,) daquele estigmatizado como homossexual, seria decorrente de sua imanente orientação sexual. Nesse sentido, o homossexual só haveria de sofrer por causa de sua inerente homossexualidade, não tendo nada haver como outras pessoas e/ou instituições que o tratam e com as quais convive.

Palavras frequentes nesse projeto mostram onde é localizado o sofrimento: “um número expressivo de pessoas que sentem a necessidade de procurar profissionais da Psicologia para harmonizar os seus conflitos interiores”.  A categoria dos conflitos interiores é um conceito fundamentado num modo de compreensão que extirpa a dimensão social, histórica e multideterminada do sofrimento psíquico desvelando-se em seu caráter político individualista e fundamentalista liberal e conservador.

Recapitulando tudo até aqui: Ficou nítido que os psicólogos podem atender pessoas que se concebem como homossexuais e que sofram em decorrente de sua orientação sexual dentro de uma sociedade patriarcal machista e heteronormativa, mas que, apenas não considera esse sofrimento decorrente da própria pessoa, mas sim da vivência numa sociedade opressora. Sendo assim, o modo que se trata a homossexualidade será mais humanista e sensato, pois não está isolando o indivíduo de uma realidade que o cerca e por vezes o persegue.  Exemplo, uma de nós do coletivo Anastácia Livre relata: “eu fui para a psicóloga por ser homossexual – entre outros motivos -, e minha psicóloga trabalhou comigo que esse sofrimento não era pela minha orientação, mas por eu viver numa sociedade que me faz sentir mal, por ser heteronormativa”.

Então a heterossexualidade seria uma norma na sociedade? A História da humanidade está pautada em perseguições contra ao que convencionaram chamar de minorias – pessoas fora da norma/normalidade –, portanto, em momentos de retrocesso como este, faz-se importante retomar alguns fatos históricos para darem base à nossa reflexão. Lembremos do massacre de homossexuais no Holocausto, promovido por Adolf Hitler, nos sangrentos anos da Segunda Guerra Mundial, durante o Terceiro Reich Alemão, e que por muitos anos foi deixado debaixo do tapete. Onde procedimentos médicos foram utilizados com o mesmo discurso da ‘cura gay’, onde milhares de pessoas (estimam-se em 6.000) sofreram as mais cruéis experiências, nas mãos de corpos médicos que colocavam em prática os ideais nazistas de limpeza étnica e social.

Destaque também à perseguição de homossexuais, na década de 1970, nos Estados Unidos, onde verdadeiras “caças aos gays” inflamadas por políticos da época, com respaldo da sociedade branca, heterossexual, rica, levaram ao assassinato de dezenas de pessoas.

Lembremos também dos inúmeros casos de homossexuais assassinados no Brasil, onde podemos contabilizar 1 caso a cada 26 horas, segundo a organização Grupo Gay da Bahia (GGB), tendo em conta que entre 2006 e 2012 houve um aumento de 177%. Tais atos de violência são reforçados por grupos de ódio que seguem ideais herdados destes períodos desumanos de nossa história, contabilizando cerca de 25 gangues só na cidade de São Paulo. Não podemos deixar de destacar que, estes ideais também seguem sendo orquestrados publicamente, seja dentro do Congresso Nacional, com propostas de leis absurdas, quanto nos meios de comunicação, onde homossexuais continuam sendo hostilizados nos mais variados estereótipos, em novelas e programas de humor, alimentando todo esse conjunto de intolerâncias.

E por fim, em meio de tantos outros fatos que podemos elucidar, lembremos ainda do crescente número de estupros “corretivos” contra lésbicas ocorridos no Brasil, motivados pela velha moral machista e homofóbica, do “Você vai aprender a gostar de homem”, onde 6% das vítimas de estupro que procuraram o serviço do Disque Denúncia do governo federal, durante o ano de 2012, são de mulheres lésbicas, segundo a Liga Brasileira de Lésbicas. Portanto, a história escancara: há a heteronormatividade e esta nunca foi dissociada de uma concepção política deveras conservadora.

Mas afinal, para que serve então este projeto? Não faria sentido à existência desse projeto senão para uma finalidade: a usurpação da psicologia para a reprodução de valores do conservadorismo político, e mais, para garantir o poder deste, que se expressa em opressões sociais e exploração capitalista, dentro das instâncias públicas. Eis aqui como o ponto nodal deste projeto, a sua proposição tenta ardilosamente afirmar o conservadorismo, o controle do corpo, a manutenção e o fortalecimento de instituições como a família burguesa, do machismo, patriarcado e (legalmente) da violação dos direitos humanos. Em todos estes ataques, perpassa o modo de compreensão metafísico defendido por vários pastores e seus seguidores, que ultrapassam os limites do direito e da dignidade humana ao pregar tamanho preconceito em forma de Decreto Legislativo completando, pois, a afronta ao Estado Laico.

Como historicamente levantado, descontextualizando e internalizando o sofrimento a partir de uma posição política, este projeto responsabiliza o indivíduo homossexual como modo de esconder o conflito real. E assim, de forma sutil, esse projeto tenta prender a psicologia aos grilhões da classe dominante na forma de um individualismo Universal e a-histórico versando sob o pretexto da “liberdade e a proibição do psicólogo”. Afinal, apoderando-se dessa área, eles terão ferramentas para inculcar determinado tipo de consciência em suas obedientes e dóceis ovelhas, “reprimindo” “psicologicamente” o conflito real.

Para garantir a ascensão deste conservadorismo político, faz-se conveniente a seus protagonistas forçar nas massas religiosas (principalmente a evangélica) um ódio e temor em relação a homossexuais. Pois, mesmo que possamos dizer que há muito tempo os evangélicos fossem avessos a pratica homossexual, esta enorme investida na irradicação da homossexualidade, só ganhou força e direção por conta de algumas figuras políticas e públicas, como Feliciano e Malafaia, que incitaram tais sentimentos contra a comunidade LGBTT sob a falácia da ditadura gay. Este discurso conservador serve para entravar não só qualquer política pública de moderação em prol de minorias sociais, mas para combater uma alternativa política e social ao capitalismo e seus parceiros ideológicos.

Temos então de nos posicionar não somente como pertencentes à comunidade LGBTT e “simpatizantes”, mas como a Esquerda que prega uma transformação radical da sociedade em todos os seus aspectos sociais e que luta pela emancipação humana e igualitária, desatada de privilégios, preconceitos e servidão. Portanto, ainda que não escutem a nós ou à “efetividade”, não nos calaremos diante de tal violência.

- Jaq Gigeck
formada em psicologia pela PUC-SP e militante do coletivo



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