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quarta-feira, 16 de abril de 2014

A luta das mulheres pobres e pretas não cabe nos Tribunais Penais

Há duas semanas, o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão mantendo a condenação de Dado Dolabella pela agressão a Luana Piovani. A decisão e especialmente o discurso utilizado na fundamentação arrancou comemorações não apenas da atriz, a suposta beneficiada com a “vitória”, mas de muita gente[1] e de quem, inclusive, nunca alimentou ilusões em relação ao Judiciário e sabe bem a serviço de quem ele está. Na contramão das celebrações, acreditamos que, infelizmente, não há o que comemorar. 



De fato, como afirmou um conhecido jornalista e companheiro da luta das mulheres, em artigo em que comenta com entusiasmo a decisão[2], “a violência contra as mulheres não distingue cor, idade ou classe social”. O Sistema de Justiça Criminal, contudo, caro companheiro, conhece todas essas distinções e em detalhes.

Dessa forma, embora a decisão proferida pelo STJ, no caso Luana Piovani, não nos faça mais uma vez ter que lamentar e repudiar a postura sexista e misógina que tantas vezes é escancarada pelo Judiciário brasileiro sem ruborizar, como a proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no próprio julgamento de Dado Dolabella , infelizmente, não é verdade que "a Lei vale para qualquer mulher, independentemente de sua condição física e social ou do local da agressão", como afirmou o Superior Tribunal.

Apesar do discurso não sexista do STJ na fundamentação dessa decisão, mérito, inclusive, que devemos à luta das mulheres, cuja pressão, por vezes é sentida pelo Judiciário, a verdade é que há distinção entre “as que podem e as que não podem apanhar”, o que faz do uso do discurso da igualdade, nesse caso, uma ferramenta do próprio Judiciário para legitimar (e ocultar) um tratamento diferenciado (à Luana Piovani) no enfrentamento da violência sexista doméstica.

A vitória da Luana Piovani nos tribunais não é uma vitória para todas as mulheres, sobretudo para as mulheres pobres, pretas e periféricas.

Desde o advento da Lei Maria da Penha, que em 2014 completa 8 anos desde a sua promulgação, não faltam relatos e notícias de mulheres que a "Justiça" não foi capaz de proteger. As “falhas” apontadas na atuação do Estado que, segundo a legislação, deveria proteges as mulheres, são das mais variadas espécies: o judiciário não concede as medidas protetivas, o executivo não faz sua parte na promoção das políticas públicas previstas (de renda, de redes de serviços de atendimento psicossocial e de proteção etc), as medidas protetivas não funcionam efetivamente, pois a polícia não faz sua parte, e, a mais apontada entre todas as falhas, há impunidade.

Até se falar em tipificar o feminicídio já se falou[3].

É verdade que tudo isso acontece, mas não é tão verdade assim que são falhas na atuação do Estado, da mesma maneira que não o são o descaso com a promoção de moradia, educação, saúde e, principalmente, as balas perdidas, as prisões “ilegais” e os “excessos” policiais nas periferias contra o povo pobre e preto.
Não são falhas, portanto, porque a atuação do Estado é produto do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas e, como tal, é expressão e mantenedor das relações (de produção) que caracterizam e estruturam esse sistema. A atuação do Estado Brasileiro é, assim, forjada pela e na conjugação das relações de classe, fundadas no violento processo de extermínio dos povos indígenas e de escravização dos povos africanos por povos europeus, e das relações (de dominação-exploração) entre homens e mulheres, modificadas nesse e por esse sistema de produção.



Em outras palavras, o Estado Brasileiro é garantidor das desigualdades sócio-raciais e do patriarcado (nome dado às relações de dominação-exploração entre homens e mulheres). É garantidor do “capitalismo-patriarcal”.

Nesse sentido, o Sistema de Justiça Criminal, aparelho penal do Estado, funciona não à supressão da criminalidade, mas como ferramenta que mantém e aprofunda as desigualdades sócio-raciais-sexuais, por meio da contenção punitiva das camadas em desvantagem nessas relações desiguais e, por isso mesmo, mais vulneráveis.

Dizemos que o Sistema de Justiça Criminal é por natureza seletivo: seleciona que bens proteger e que pessoas criminalizar e encarcerar, de maneira que 80% da população prisional no Brasil está presa por crimes contra o patrimônio ou por tráfico de drogas e os presídios encontram-se superlotados de jovens pobres, pretos e periféricos.

Acontece que, da mesma maneira que há uma seleção dos bens a serem protegidos, há uma seleção de quais bens NÃO proteger e consequentemente que pessoas também NÃO proteger.
A vida das mulheres e, sobretudo das mulheres pobres e pretas não é um bem selecionado pelo Estado para ser protegido e nunca será, não obstante os índices alarmantes de violência doméstica no país.



A Luana Piovani contou com o aparato do Estado, na condenação do autor de sua violência, não porque "a lei vale para toda e qualquer mulher", mas porque a Lei vale para mulheres como ela, brancas e ricas. Ao contrário de coibir, o Estado somente pode corroborar com a dinâmica do capitalismo-patriarcal, em que as maiores vítimas são as mulheres pobres e negras.

O Movimento Mães de Maio, surgido há cerca de 8 anos, mesmo período em que a Lei Maria da Penha está em vigor,  vem demonstrando exatamente isso, que o Estado Penal não promove proteção, exceto às classes sociais abastadas.

Unidas em torno do luto por seus filhos, lançaram-se à luta organizada escancarando as funções reais do Estado penal-militar: esculachar, prender e matar jovens pobres, negros e periféricos.

Ao se organizarem enquanto mães, mães pretas, pobres e periféricas, tais quais seus filhos executados, demonstraram também que a atuação violenta do sistema penal não é apenas dirigida a eles, mas também a elas, a essas mulheres e mães.

Pretas e pobres, trabalhadoras precarizadas, embrutecidas pelas responsabilidades que se sobrepõem, mães solteiras e, em grande parte das vezes, chefes de família, essas mães negras e periféricas não correspondem, aos olhos do Estado e da sociedade, aos “bons e domésticos padrões de gênero”, somente “acessível” à parcela branca e rica das mulheres.



Por essa razão, essas mães negras e periféricas de hoje, tal como suas ancestrais escravizadas, cujo ventre era regulado pelas leis da escravidão, cujos filhos lhes eram subtraídos, arrancados de seu convívio, vendidos separadamente no mercado de escravos, são impedidas, quando o Estado prende ou mata seus filhos, de exercerem a maternidade, são punidas por ousarem ser mães, por ousarem dar à luz a mais um ser de pela preta no país em que a escravidão só adquiriu novos contornos.

Essa é a mesma razão, inclusive, por que são as mulheres pobres e pretas a superlotar as filas dos presídios nos dias de visita. Valendo-se da responsabilização atribuída a essas mulheres pelo sustento e cuidado com seus filhos, o Estado as despe, as invade e as violenta, quando elas se dirigem aos presídios para visitar seus entes queridos.

Essa é a mesma razão, ainda, por que milhares de mulheres pobres e negras estão sendo encarceradas. Mães solteiras e chefes de família, principais ou únicas responsáveis pelo sustento do lar, estão em desacordo com a ordem patriarcal que estabelece a chefia da família como função exclusiva do homem. Ao mesmo tempo, constituem um interessante exército de mão de obra para a empresa da produção e do comércio de entorpecentes, alocando-se onde sempre estiveram as mulheres pobres e negras, nos postos mais precários de trabalho, com o diferencial de que, nesse caso, o mais precário é, não por coincidência, o mais suscetível à atividade policial.

Pelas lutas que vemos sendo travadas nas periferias, pelas mulheres pobres e negras, como a do Movimento Mães de Maio ou como a organização de mulheres familiares de pessoas presas, não vemos razão para crer que a lei penal seja capaz de trazer proteção a essas mesmas mulheres de pele preta quando violentadas por seus companheiros ou por seus familiares homens.

Assim, as medidas de proteção não são cumpridas quando a mulher em situação de violência reside em alguma “quebrada”, não porque o Estado falha, mas porque ele acerta no cumprimento de seus objetivos reais, por que a função da polícia não é, nunca foi e nunca será proteger vidas quando adentra favelas.
Por tudo isso, cremos que a escolha por delegar nossa proteção à Polícia, à Delegacia, ao Judiciário - ao Estado - está em contradição com a luta histórica das mulheres por autonomia. Todas essas instâncias sempre foram e sempre serão aspectos do patriarcado, não sendo possível derrubá-lo, lançando essa tarefa, que é das mulheres, a essas esferas.

Acreditamos que é preciso apostar na ousadia de construirmos nossa própria proteção, de maneira popular e autônoma!

Toda nossa solidariedade à Luana Piovani, mas a luta das mulheres pobres e pretas não cabe no Judiciário e nem nos Tribunais Penais!





[3]O comentário é de uma pesquisadora do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em “Lei Maria da Penha não diminui violência contra mulher no Brasil”, disponível no sítio: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/09/25/lei-maria-da-penha-nao-diminuiu-violencia-contra-mulher-no-brasil-diz-ipea.htm

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